Thursday, August 2, 2007

A bomba-relógio do multiculturalismo

O termo multiculturalismo foi, se não cunhado, pelo menos difundido durante os anos 90, tal como outros conceitos que viriam a marcar a década, como por exemplo o politicamente correcto ou o neo-hippy. Conceitos esses que seriam de tão optimistica pouca dura como a vibração positiva do iniício da década, deixando à mostra as nosssas imperfeições enquanto espécie, mas estou a adiantar-me, já lá vou.
Que uma década como a de noventa tenha sido alfobre rico de novos conceitos de tolerância cultural não é de estranhar, posto que marca uma época de pós- muita coisa. É a época pós-guerra fria, é a época pós-yuppy, é a época de pós-apartheid e pós-muro de Berlim e pós-guerra da Irlanda do Norte, até mesmo de pós-conflito em sítios improváveis como a Palestina, como Angola... O clima político era de optimismo, pelo que toda uma nova abordagem se tornava necessária, um repensar todos os aspectos da vida. Em termos privados repensaram-se os tradicionais papeis dos géneros, apelando-se a uma menor objectificação das mulheres e uma maior responsabilização dos homens enquanto companheiros e pais ( os conceitos de assédio sexual e date rape surgiram nesta mesma época, por exemplo), em termos públicos e políticos toda uma nova perspectiva de tolerância cultural surgiu, celebrando-se as diferenças em vez de apelar à manutenção de uma matriz cultural aglutinadora e absorvente como se tinha no passado. Surgiram nos Estados Unidos os chamados cidadãos hifenados, os African-American, Native-American que traduziam essa nova política de resgate e valorização da história, cultura e tradições das minorias, fazendo-se um esforço, pelo menos oficial, de incluir toda a gente e de não excluir ninguém deste novo e admirável mundo que surgia.
O objectivo por detrás do multiculturalismo era, ao mesmo tempo, uma espécie de redenção fruto da má consciência da civilização WASP (branca, anglo-saxónica e protestante) e uma nova maneira de ver as coisas, encorajando-se os recém-chegados imigrantes a manterem a sua identidade em vez de se diluirem nos celebrados melting pots das grandes cidades ocidentais. Numa sociedade como a portuguesa esta questão de absorção cultural nunca foi particularmente relevante (eu diria que bem antes pelo contrário, a cultura portuguesa sempre foi extraordinariamente àvida de coisas novas e partilha de experiências culturais, e olhem que isto é uma anti-colonialista que vis fala). Em sociedades culturalmente mais assertivas, como a Americana, ou a Inglesa e Alemã a abordagem do multiculturalismo é verdadeiramente radical e inovadora.
Este novo modelo optimista e , por vezes, um tanto vazio de multiculturalismo e aceitação de outras civilizações foi, como seria de esperar, bastante curto na sua duração. Apesar dos provados benefícios da manutenção de uma atitude tolerante, o traumático desenrolar da primeira década do novo milénio põs-lhe um fim abrupto. Que os grupos culturais aproveitassem o clima de liberdade para nos atacarem a nós e ao nosso estilo de vida era verdadeira e completamente inaceitável. Não é dificil perceber porque é que o multiculturalismo foi alvo fácil para todos os conservadores de direita: afinal, quando antes havia uma cultura dominante que tentava (e com extremo sucesso) obliterar as culturas dominadas, ninguém surgia do nada para nos atraiçoar e destruir. E devo dizer, em abono dos conservadores brancos e privilegiados da elite que alguns dos seus argumentos são válidos e pertinentes. Senão vejamos.
A sociedade americana construiu, do nada, uma cultura aglutinadora de gente de sítios diversos sendo próspera e de sucesso, e, se não formos muito exigentes nestas coisas, democrática. Sim, está bem, deu cabo da tradição, língua e cultura de muitas minorias, mas também significou o fim de muita boa tradição atrasada e nociva, como por exemplo o enfaixar de pés das meninas na comunidade Chinesa. Partir do princípio que a matriz cultural ocidental é superior é extraordinariamente arrogante, mas a verdade é que os seus padrões de tratamento de, por exemplo, mulheres são superiores às do islão, índia ou África, onde pouco mais que coisas da propriedade dos homens são. E a verdade é que há coisas que são feitas nos nossos países e são inaceitáveis, devem ser inaceitáveis, mesmo à luz da tolerância do multiculturalismo, como por exemplo os casos de excisão feminina que vieram à luz em Espanha, ou de mortes de honra e casamentos arranjados de menores em Inglaterra nas comunidades Indiana e árabe. Nesta prespectiva uma cultura forte e dominante que não tolera tradições arcaicas e bárbaras é uma vantagem inegável e, sob todas as perspectivas, uma ideia inteligente. A questão é, onde traçamos a linha, em que ficamos?
O chato nestas questões culturais é que nenhuma cultura é completamente superior à outra. é verdade que levamos coisas boas, como por exemplo uma medicina avançada e eficaz e os direitos humanos (mesmo aplicados imperfeitamente), mas exportámos também uma cultura cruel para com as imperfeições e as diferenças, obcecada com beleza, juventude e saúde, cruel com os velhos e os fracos, fria, indiferente, acomodada, stressada. Podem dizer-me que, em termos familiares, a rede carinhosa de família alargada típica da América Latina é pior que a família nuclear isolada da sociedade ocidental? No way. O multiculturalismo não é perigoso, só o é quando é tomado, por parte de radicais, como uma excelente desculpa para a violência e a intolerância.
Não foi, de todo, a tolerância cultural britânica que induziu os terroristas a entrar no metro e fazer-se explodir, antes o fanatismo religioso destes (e não da sua comunidade grosso-modo). Não foi a nossa atitude optimista de aceitação de diferentes culturas que nos tornou alvos fáceis para terroristas, mas sim políticas complexas (e por vezes contraditórias) de lidar com questões complicadas, como o problema palestiniano ou libanês que nos pintaram um alvo na testa (e estou simplesmente a relatar factos, não a tecer juizos de valor sobre a legitimidade do terrorismo, cuidado).
Como filha dos anos noventa e membro algo relutante da X generation, a minha posição face ao multiculturalismo é a que sempre foi, mas compriendo os dilemas morais que pode causar.Onde estão as fronteiras entre comunidades definidas e guetos entrincheirados na sua própria vivência, incapazes (e sem vontade nenhuma) de se integrar? Onde fica a fronteira entre a vontade de fazer valer os direitos humanos básicos e a imposição de uma cultura? Até que ponto não foi provado já que, por vezes, a imposição á força de um modelo cultural é benéfica e vantajosa, evitando muito trabalho e conflitos? Excelentes perguntas que, certamente mereciam uma excelente resposta. Não sou sábia o suficiente para as responder, mas perguntar já é um princípio.

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