Monday, September 10, 2007

O peixe e a cana de pesca


A verdade é que, passado um tempo, imagens como estas começam a cansar. Com as entranhas esfaceladas de choque e culpa só queremos voltar a cabeça para o lado e deixar de ver, desligar a televisão ou fechar o jornal e pensar em coisas queridas e fofinhas como gatinhos acabados de nascer, esquecer. Periodicamente chegam-nos os pedidos de socorro mas estamos já habituados, mais do mesmo, sempre mais do mesmo a acontecer aos pobres. Fora do nosso quintal passa-se fome e as crianças morrem na primeira infãncia, subnutridas, doentes, negligenciadas. Ouvimos as estatísticas, conhecemos o que dizem muito bem. Que o que gastamos numa saída à noite pagava todas as vacinas a uma criança num país do terceiro mundo. Que a verba destinada a alimentação de cães e gatos conseguiria provavelmente servir para fornecer saneamento básico a países sub-desenvolvidos, que aquilo que gastamos em cinema pagava a educação a muitos milhões de pessoas. Não me parece que tenhamos o coração mole ou aberto o suficiente para isto conseguir fazer uma verdadeira diferença. Talvez demos uma moeda para uma colecta, moeda essa que, diga-se, serviria provavelmente para comer mais um doce, beber um café ou uma coisa assim. Damos pouco e sem coração, uma moeda uma vez por outra porque a consciência já não se aguenta.
Do ponto de vista cristão, isto é assim a modos que uma contradição dos diabos. Não tenho ido muito à missa nas últimas duas décadas, mas parece-me que me lembro distintamente do episódio da viúva, que JC louvou pessoalmente por dar, não como os fariseus o que lhe sobrava, mas sim o que lhe fazia falta. Sempre me pareceu essa a definição de caridade cristã. Ou melhor, é essa a noção de caridade cristã. Mas nisto de religião e dogma cada qual tira o que quer, como a agua benta e a presunção. E discutir as contradições da fé católica na soiedade ocidental é assunto demasiado extenso para aqui. Não é isso que quero abordar, mas sim esta estratégia de darmos através da pedinchice emocional e só através dela, esgotando-se os fundos para uma determinada causa por causa da sobre-exposição da mesma. E o modo como isso é feito de forma calculada.
Há acho que um ditado chinês que diz qualquer coisa que se se quer ajudar um homem se lhe deve dar não um peixe para comer mas sim uma cana de pesca, para pescar. O que é, de todos os pontos de vista, um conselho admirável. Dotar os desfavorecidos de meios para melhorarem a sua vida vai fazer mais que simplesmente encher-lhes a barriga. Vai dar-lhes motivação, sentido de propósito e orgulho. Ah. mas os deuses não permitam que existam por aí pobrezinhos orgulhosos. Se alguma coisa os pobrezinhos, na nossa óptica ociosa, devem ser humildes e gratos, de mão estendida e olho choroso...
Se pensam que este meu olhar é cínico sobre os donativos e o que esperamos receber em troca de, digamos, África, tenho três palavras para vocês: Política Agrícola Comum (PAC). Sim, essa mesma que manda subsidios giros para ovelhas fantasma e jeeps de agricultores. A política agrícola comum é, efectivamente, uma fonte de agravamento dos problemas em África. Eu explico. Um agricultor de África, por exemplo, vive abaixo do limiar de pobreza. Vamos que uma ONG ou o recurso ao micro-crédito (se for agricultora) ajuda a culticar um pequeno campo de batatas para vender. O custo final dessas batatas é, digamos, 25 cêntimos. E para recuperar o investimento e continuar operacional o agricultor tem de vender tudo o que produziu. Claro que depois a UE tem a PAC e regras estritas sobre quotas de produção e algum país maroto excedeu a sua quota de batatinhas. Num gesto de boa vontade estas são mandadas para África, dadas ou vendidas em sistema de dumping a 15 cêntimos o kg. A bem dizer que acabou de arruinar o pobre agricultor que deu o corpo ao manifesto e se empenhou no banco, perpetuando a mão estendida em vez da iniciativa de desenvolvimento. O que na nossa sociedade é não só uma virtude, mas obrigação (e os níveis de crescimento são vigiados pela OCDE como falcões), é desencorajado por esta caridade bacoca do outro lado.
A atitude de dar à parva, em vez de estimular, nos países de origem, o desenvolvimento sustentado, é um tremendo tiro no pé. Porque o que acaba de acontecer é que os desgraçados que vivem do outro lado do nosso mundo próspero vêm cada vez mais para os nossos países.O medo de sermos invadidos por hordas de Africanos ou Sul-Americanos famélicos é tão grande que erguemos muros cada vez mais altos, guardamos as fronteiras e estabelecemos quotas (a UE, então, adora quotas). Exploramos os que trabalham para nós ilegalmente e, quando achamos que são demais, ou já não precisamos deles, mandamo-los de volta para a fome e para o desespero. Sim, que os deuses, mais uma vez, não permitam que a nossa supremacia cultural e económica branca seja posta em causa por outros sotaques e tons de pele. Estou convencida que teriamos menos problemas de imigração (se é realmente um problema ) se ajudássemos, através da educação e do estimulo do desenvolvimento , os países dem dificuldades a dotarem-se de estruturas que resolvam os seus problemas.
Ver as coisas como são, em vez de como poderiam ser, dá-nos um sentimento de frustração tremendo. Um destes dias estive a ler um livro sobre uma ONG que tinha dotado uma aldeia africana com um poço de água potável, ensinando essas pessoas a construí-lo, mantê-lo e a usá-lo correctamente. Os aldeões não só ficaram satisfeitos por uma fonte de água limpa e segura como, passado algum tempo o poço continuava a funcionar de forma impecável, ao contrário dos outros cuja manutenção estava a cargo da ONG. É que é um principio básico do capitalismo: tomamos melhor conta das coisas se forem nossas e tivermos algo a ganhar com isso. Claro. A nossa satisfação hipócrita é que não tem aqui lugar. Se, em vez de pedirmos pontualmente, criarmos programas in loco para melhorar e elevar o nível de vida lá melhoramos não só o nível de vida, mas o nível emocional. Claro que isso ia implicar abdicar de alguns dos nossos luxos (PAC, PAC, PAC) e pagar um preço um pouco mais justo pelas coisas, enquanto que a pedinchice só implica abdicar de uma coisa insignificante e a curto prazo. Por isso não é de surpreender que seja a solução do peixe, e não a da cana de pesca a adoptada mais frequentemente. Claro. É a que nos deixa mais descansados...

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