Monday, June 11, 2007

Quem tem medo da globalização?

Com as vozes que se insurgem com uma regularidade monótona contra a globalização, e que vêm de muitos (e antagónicos entre si) movimentos, a globalização é o papão mais recente. É, consensualmente uma coisa má. Porque há tantas críticas a este fenómeno? Sem querer ser parcial, mas já sendo, talvez porque existam boas razões para isso.
Actualmente, e para produzir o mais barato possível, o primeiro passo é, antes de mais, reduzir os gastos com os trabalhadores. As horas de trabalho aumentam ou são brutalmente reduzidas (como os salários), os benefícios sociais com coisas de somenos como saúde e desemprego reduzem, etc. E como nós vivemos numa cultura civilizada em que as condições de trabalho têm regras estritas (coisas mesquinhas por que se lutou décadas, como horas de trabalho aceitáveis, salários dignos, segurança no trabalho etc.), para produzir mais barato, deslocaliza-se. Dito assim até parece bom, muda-se uma fábrica de um sítio onde produzir é mais caro (devo realçar mais uma vez por causa de coisas mesquinhas como os salários e benefícios dos trabalhadores) para um sítio onde é mais barato, estimulando o crescimento económico de uma área mais desfavorecida. A chatice é deixar para trás milhares de desempregados causando crises gigantescas nas regiões afectadas (como por exemplo o sector mineiro na Inglaterra, ou os despedimentos em massa da indústria siderúrgica americana) e, quase sempre problemas ambientais complicados. E sendo o mercado o que é, assim que o nível de vida aumentar no país para onde a indústria se transferiu muda-se de novo para outro sítio mais barato, deixando, tal como uma praga de gafanhotos, tudo arrasado para trás.
O motivo porque as coisas são tão baratas quando nos chegam às mãos é, quase invariavelmente, a exploração de trabalhadores, a constituição de uma mão-de-obra que se não é escrava anda lá perto, e a negação de todo e qualquer direito em termos de trabalho (e quantas vezes, infelizmente, direitos humanos). Claro que nós não nos queixamos dos artigos incrivelmente baratos que vêm da Índia ou da China. Queremos ter coisas, muitas coisas. E quanto mais baratas, mais coisas podemos ter. E não julguem que isto se restringe aos artigos mais baratos de marca branca, mas também, e sobretudo, aos artigos mais caros, às marcas que fixam status e criam cobiça. Apesar das campanhas nos media contra as sweatshops (termo que designa fábricas que produzem artigos de luxo com mão de obra escrava ou muitíssimo mal paga, por exemplo imigrantes ilegais nos Estados Unidos), a verdade é que todos queremos o relógio ou os jeans ou o gadjet da moda e não nos importamos peva com como foi produzido.
Tirando as franjas mais radicais das sociedades desenvolvidas, esta solução é uma que agrada a todos (apesar de ser moralmente objeccionável). Dificilmente os governos dos países se vão queixar de investimento no seu país, porque, feitas as contas, trabalho escravo, salários miseráveis e destruição do ambiente são preferíveis a nenhum trabalho e nenhuns salários e uma população sem perspectivas. Dificilmente os trabalhadores se vão queixar de serem explorados, pois que, mais uma vez, trabalhar muitas horas para sobreviver é preferível a morrer de fome. E muitíssimo dificilmente o consumidor final se queixa de ter produtos mais baratos à sua disposição.
Na era global de comunicação, vivemos todos mergulhados no verniz intenso do progresso e da modernidade. Os media vendem-nos uma imagem brilhante, lustrosa de um mundo bom, livre, esclarecido e próspero, onde tudo é possível. E todos os países do mundo engolem felizes essa imagem, em parte porque é mais fácil que aceitar a dura realidade, em parte porque nos convém mais olhar só para as coisas boas, o lado brilhante da vida no século XXI. É mais fácil centrar-nos nas coisas boas da modernidade- a Internet, a comunicação global, a prosperidade (tantas vezes aparente) que naqueles que sofrem e são explorados. Como a Rússia pré-revolução de um lado há o brilho intenso de uma sociedade opulenta e de outro contraste com os milhões que vivem em servidão, fome e desespero. Não que isto seja motivo de alarme, descansem.
Não haverá, desta vez, nenhum movimento revolucionário que corte as gordas cabeças capitalistas, descansem. Não seremos assassinados nas nossas camas confortáveis por uma turba que chegou ao limite de resistência. Ah, não. Estamos todos demasiado imersos no mundo consumista para isso. Os pobres e desfavorecidos deste mundo não querem um mundo melhor porque este está perfeitamente bem como está, querem só e apenas uma fatia do bolo, uma parcela da opulência civilizacional que o hemisfério norte construiu para si. Querem os símbolos, tantas vezes fúteis, do progresso a que chegámos, as Nike e os Nokia e a Coca-cola e o big mac, os plasmas e as máquinas digitais, o blogger e youtube, a Burberry's e a Chanel, porque a felicidade reside aí. Os oponentes a este fenómeno têm forçosamente de ser radicais perigosos e hippies desajustados, ambientalistas alucinados, antipatriotas e subversivos que se devem reprimir e ignorar. Quem, se não doidos perigosos se atreveriam a negar a excelência do modelo actual? Vivemos, como diria o Cândido do Voltaire, no melhor dos mundos possíveis.
Na realidade, objectar à globalização é um bocado um exercício fútil, porque ela existe, sendo esta posição mais um posicionamento filosófico ou ético, se quiserem, que uma verdadeira militância política. Numa época em que tudo está perto de tudo e tudo se pensa em termos globais e tempo real, a globalização é "apenas" o reflexo económico deste tudo em todo o lado. Se retirarmos o hype das campanhas publicitárias e o frenesim mediático, a globalização é apenas um alargamento do bom velho princípio capitalista: produzir o mais barato possível para vender o mais caro possível e fazer o maior lucro possível. Apesar de isso levantar objecções morais já no início da revolução industrial a verdade é que, em termos de dinheiro, em equipa que ganha não se mexe. Na que vende também não.
Devo confessar que o cinismo duro por detrás do espírito da globalização me incomoda um bocadinho (pronto, está bem, muito). É imoral e vergonhoso. Para ver o que a deslocalização está a fazer é só olhar à nossa volta para a crise em que estamos mergulhados. Para ver como a globalização é perversa e desigual é só olhar para o estado social de países da América do sul ou da Ásia. Mas não há muito a fazer. A simples defesa destas ideias já me dá um passe garantido para a ala radical de esquerda libertária (de que, por acaso até já faço parte). E depois porque qualquer coisa que se diga costuma chocar com os nossos hábitos de consumo enraizados. Apesar de nunca ter sido obcecada com marcas e status também sou consumista (os sapatos são o meu bilhete para o inferno na perspectiva de qualquer bom comunista) e nem sempre consigo subtrair-me ao hype mediático da publicidade. O que não me impede, mesmo assim, de detestar a ideia de globalização. Era para fazer um texto mais imparcial sobre globalização e acabei por fazer um totalmente anti. Oh well. O que tem de ser, tem de ser...

5 comments:

Su said...

Mesmo assim ainda acho que douraste a pílula. Normalmente quem trabalha em sweat shops não são pessoas locais que viviam nas ruas da amargura até serem capturados por uma qualquer fábrica. São gente que, por mais miserável que fosse, tinham uma comunidade a que pertenciam- e isso é sempre melhor do que a miséria em que se vêm depois. E, na verdade, são mesmo escravos- são mantidos em edifícios em que naõ podem respirar ou sequer mexer-se, os magros salários que recebem são refens do aluguer de buracos infectos e contas da luz e água que eles não querem mas que são impostos pelo patrão- o que significa que, ao fim do dia de 14 ou mais horas de trabalho diário a 30 centimos por dia, ainda ficam a dever ao patrão que foi generoso o suficiente para os deixar trabalhar. Este é o exemplo dado pela Wal Mart coorporation no seu sacrossanto americanismo. E se os empregados não falam não é porque tenham ficado estúpidos com os químicos mas simplesmente porque não há muito quem se importe com eles e francamente, que mais queremos nós da china senão a comida? E se quisermos mesmo entrar pela via da teoria da conspiração, é só lembrar que é mais fácil fazer isto a trabalhadores que não falam a lígua da globalização- o Inglês por excelência e o espanhol por aproximação. É mais difícil ter uma sweat shop no México que está alí mesmo no quintal americano sabendo que os trabalhadores podem vir para a rua que há sempre quem os entenda do que na China, que está tão longe de tudo e onde os pecados só porecisam de uma legendagem patriótica para se tornarem em virtudes.
A ética da etiqueta não preocupa muita gente - é small print. O que interessa é a marca.
Acho que tens razão no geral- a globalização é a formula última para f**** com o que resta de humanidade em cada um de nós. Que se lixem os outros- desde que nós tenhamos aquilo que queremos. Mais ou menos como cantava a Janis Joplin "Oh Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz ?
My friends all drive Porsches, I must make amends."
Correndo o risco de parecer ingénua, talvez a resposta estaja nas linhas do velho anúncio da Bolacha Maria " O que é nacional é bom" pelo menos, sabemos que se é made in Portugal- ou nos países onde nos dispersamos-tem de ser produzido de acordo com conceitos mais éticos do que aquelas Levis de imitação.


Beijo

Su

meristema said...

O padrão de desenvolvimento que está atrás das deslocalizações (busca de menores custos de produção através da busca de factores produtivos mais baratos ou de maiores incentivos à actividade) é bem conhecido, e acentuou-se nos últimos anos em Portugal o seu reverso. Agora que os factores produtivos são menos competitivos a atracção de investimento é concretizada através de incentivos (levados em certos casos a níveis obscenos) e ao valor acrescentado de uma mão de obra mais qualificada para gerir processos produtivos mais evoluídos, surgidos do caldo onde se misturam competição e ciência.

Como bem escreveste no teu texto, a fuga ao modelo actual é difícil e não pode ser feita "a partir de baixo" como ao longo da primeira metade do século XX se fizeram as maiores conquistas nos direitos dos trabalhadores (visão minha - admito que seja discutível). Apenas pode ser feita por cima, de modo traumático e alterando significativamente os parâmetros do jogo. E estou sim a falar de coisas muito violentas e mesmo apocalípticas - Guerra, Praga, etc.

Apreciar uma situação como a do actual modelo económico é difícil para quem não tem o distanciamento de avaliar globalmente uma alternativa e fazer uma comparação. Mas se este é o ponto do caminho onde estamos, como é o resto da estrada? Feudalismo? Escravatura? Colonialismo? 250 anos, 200 anos, 100 anos. Não se está assim não tão longe desse tipo de alternativas que definharam e foram ficando para trás - e que nem admitem comparação a este modelo na nossa escala de valores. Ou admitem? Qual é a medida do sucesso de um sistema destes?

TIN

Su said...

Meristema

A história tende a repetir-se. O modelo a que estamos a voltar agora é o da escravatura. E a globalização da economia é so um nome- uma definição para consumo dos media e das consciencias de quem ainda se sente incomodado pelas lições da história.
Quanto ao distanciamento para apreciar o modelo económico, lamento, mas não acredito nessa possibilidade. Uns de uma lado e outros de outro mas todos estamos dentro deste sistema- é por isso que se chama globalização. E há alternativas- sempre as houve- a qualquer modelo económico proposto. O problema é que invariavelmente chocam com a natureza humana: sou são demasiado trabalhosas- e nós somos uma espécie onde se valoriza a economia de esforço- ou vão contra a avarice instintiva da raça humana. Veja por exemplo falhanço do Comunismo no momento em que passou de utopia a realidade.
As alternativas éticas ao modelo da globalização existem. O problema é que queremos sempre mais coisas- das quais não queremos abdicar- e mais estatuto social- para nos permitirmos o pensamento que outros tenham a mesma qualidade de vida que nós. Talvez seja culpa danossa matriz genética...

Su

Passionária said...

Na verdade, nenhum desses modelos está fora de moda, apenas tem dimensões diferentes. Não há coloniaslismo, mas grandes porções de terras férteis em África são da propriedade de empresas estrangeiras, europeias e americanas. Não há escravatura mas na China podem-se arranjar trabalhadores infantis à dúzia. Essas coisas nunca passam de moda.
Apesar de achar que se calhar seria preciso uma mudança radical para alterar este modelo, sou mais optimista em acreditar na educação. A geração seguinte, os filhos da nossa são já mais social e ecologicamente conscientes. Já lhe chamam a geração "problem solver" porque caberá a eles lidar com coisas tão complicadas como a exaustão dos combustíveis fósseis, a gestão dos recursos hídricos e as injustiças sociais. A avareza, cobiça e a maldade pura continuarão a existir, mas enfim, temos de ter fé na humanidade e que, apesar de tudo, evoluiremos para um mundo melhor e mais justo. Isso ou matar-nos todos uns aos outros e ao planeta. Enfim...

Su said...

É típico, não achas, isto de deixarmos para os outros aquilo que deviamos ser nós a resolver? A mim chateia-me deixar isso de herança aos meus filhos... Afinal, a nossa geração ainda tem uns bons 15 anos antes de ser rendida pela próxima.
Já vimos disaster movies o suficiente para pôr mãos à obra...
beijos

Su