Wednesday, June 20, 2007

Deus e espiritualidade na sociedade de consumo


No princípio dos tempos, os deuses estavam em todo lado. Num universo em que tudo era novo e grande e o homem sabia pouco, só os deuses explicavam os fenómenos naturais, só o divino poderia cabalmente explicar o mistério da vida, os constantes círculos de vida e de morte à nossa volta. O sol nascia e punha-se porque os deuses o queriam, as tempestades surgiam, trazendo ao mesmo tempo destruição e fertilidade como uma manifestação do divino misterioso que, com um capricho, podia a qualquer hora deixar de nos trazer os dons da vida. Com os tempos fomos descobrindo, perguntando, sabendo mais, e o espaço dos deuses foi recuando cada vez mais. Sabemos agora exactamente porque se põe e nasce o sol, porque crescem as colheitas e nascem bebés, de que elementos são feitas as coisas. Sabemos também que nada se cria ou perde, apenas se transforma. E no entanto, nesta época em que sabemos tantas coisas, a fé continua a ser um elemento presente, um elemento necessário.Se os deuses não servem para nos explicar os mistérios- o que não sabemos, a ciência está a trabalhar para saber- para que servem então? A resposta não é simples nem óbvia, sendo muitas vezes mais pessoal que outra coisa. Qual o papel da religião, da fé, da espiritualidade na sociedade global de consumo?
A primeira hipótese terá de ser, no meu entender, a necessidade humana de pertença, o sentido de se incluir num grupo maior e encontrar aquilo que todos procuramos: aceitação. Mesmo que seja só por motivos de tradição formais, como o que acontece agora na igreja católica europeia, ser da religião X ou Y dá-nos uma identidade enquanto indivíduos, uma comunidade à qual pertencemos, mesmo que não pratiquemos. Noutras partes do mundo a religião é o equivalente a uma tribo, um passaporte, uma bandeira. Ser judeu ou árabe são coisas muito diferentes na Europa e na Palestina, Líbano ou Síria, como ser católico ou protestante não era o mesmo na Irlanda do Norte que na França, por exemplo. Mas esta identificação vai muito para além de motivos políticos e culturais. O papel da religião é uma coisa muito mais íntima e emocional. Não é por acaso que florescem tantas seitas onde se fala tanto de amor e de perdão e felicidade e comunidade. A igreja, a fé, constitui um grupo que oferece apoio e segurança, como uma família que ama incondicionalmente, oferecendo refúgio e apoio em relação ao mundo cada vez mais distante e frio. Ser amado, sentir o amor e a aprovação por parte de outros é um impulso básico do ser humano, que facilmente ultrapassa a lógica e a razão.
Outro possível motivo para a religião é a necessidade que o ser humano tem de encontrar controlo e razão num universo de acasos e azares. Agora que sabemos tanto de ciência, que cada vez conhecemos mais o carácter arbitrário da existência, maior necessidade sentimos de uma coisa que explique, que encontre o padrão por entre todos os acasos que nos acontecem, um fim último que justifique as injustiças, o sofrimento, o medo, a dor que caracteriza a nossa vida. Se existir um deus, ou deuses, será possível interceder pelas nossas causas, pedir favores, oferecer reparação dos nossos erros, e, dessa forma evitar catástrofes e dores, controlando assim um pouco do curso da nossa existência. Podemos rezar por sucesso e riqueza, podemos pedir perdão pelo mal que fizemos provando assim, à existência teórica de um deus, que merecemos viver, que merecemos as recompensas terrenas ou divinas que pretendemos. Deus, neste sentido, é uma espécie de airbag ou cinto de segurança, que nos prende e protege em caso de embate, que, como diz a oração, nos livra de todo o mal.
Outro papel da religião, ou outras formas de espiritualidade, e talvez o mais importante, é o de forma de consolação no desespero. Não é, de forma alguma casual que muitas pessoas em situação desesperada se voltem para a religião de forma muitas vezes fanática. Se virmos muitos membros de seitas vemos pessoas que passam, ou passaram, por situações muito complicadas ao nível pessoal ou familiar. Quanto maior o desespero maior a necessidade humana de uma força que nos console, que esteja lá para nós em alturas difíceis. Quem tem conforto, uma vida familiar ou pessoal estável sente menos falta de um deus consolador que aqueles que sofrem, ou estão doentes.
Por último, todas as religiões oferecem uma visão relativa da vida, no sentido de explicarem que o que vivemos não é tudo o que haverá. Face à morte, a única coisa que a ciência não explica nem evita, a religião dá a garantia que a morte não será o fim. Castigados ou recompensados pelos nossos actos, reencarnados ou presos no mundo dos espíritos, continuaremos, num qualquer plano de existência, a ser. O que, parecendo que não, como diz o anúncio, facilita.
A sociedade actual foi-se laicizando cada vez mais até a religião ocupar um espaço íntimo de esfera pessoal. Na maior parte dos países ocidentais as práticas religiosas regulares quase foral eliminadas estando apenas presentes em alturas muito especificas como marcando ritos de passagem: o nascimento, a união, a morte. E no entanto, muitas formas residuais de fé e espiritualidade subsistem. Mesmo que as formas de religião organizada tenham cada vez menos fiéis, quase todos temos a necessidade de um poder superior a nós, diferente de nós que explique e ajude, que controle o nosso destino, desde as cartas de tarot e a velinha que ajude, ao futebolista que tem rituais de sorte. Mesmo que não se pratique religião, há sempre "modas" espirituais que se seguem, desde a onda espírita, à fé em fadas, anjos, ou até mesmo extraterrestres. A fé é inerente ao ser humano, intrínseca. Pensar-se-ia que a fé, face à ciência se tornaria obsoleta. Não tornou. Talvez porque acreditar na existência de uma força superior, qualquer que seja, seja mais fácil de aceitar que este aqui e agora em que vivemos e que, como diz Ricardo Reis, há noite antes e após o pouco que duramos.

No comments: