Tuesday, May 22, 2007

O lado certo da verdade

Como faz parte da natureza humana simplificar, temos a tendência para medir a realidade, como a nós mesmos, em termos maniqueístas de bem e mal, branco e preto, certo e errado. Interpretamos a vida- e a história- em termos do bem e do mal com que medimos tudo, sendo que, de certa forma o bem e o certo acabam sempre por ganhar. E por uma estranha coincidência nós estamos do lado certo.
É , de certa forma, uma tranquilidade e um consolo saber que nós, cidadãos do mundo ocidental, nascemos, crescemos e vivemos do lado certo, daquele que se quer exportar e espalhar. Haverá alguma dúvida que nós somos aqueles que vivemos de forma mais justa, mais confortável, mais igualitária? De há, digamos, uns cem anos para cá somos os que vivemos melhor, os que têm mais direitos, que vivem com mais paz, segurança e prosperidade. Somos os bons, mainada. E com isto nos podemos sentar no cimo da nossa superioridade e ditar leis aos outros porque, em última análise, somos quem tem razão. Certo? Errado.
Se nos anos 90 se discutia muito estas coisas de certo e errado, com o desintegrar do bloco de leste e as guerras a modos que discutíveis (sobretudo as dos Balcãs), o novo milénio voltou a separar as águas. O trauma dos atentados terroristas um pouco por todo o mundo "civilizado" voltou a clarificar a questão. Quem não está connosco está, por conseguinte, contra nós, e, inevitavelmente, errado.
Claro que esta coisa de se estar do lado certo ou errado pode ser uma discussão inútil e estéril. Os universitários radicais à esquerda e à direita que contestam o sistema fazem-no sancionados por este. Ou seja, protestam porque podem protestar, sem serem alvos de represálias. Mas tirando estes arroubos de radicalidade endémica, analisadas as coisas de forma fria e racional, nem sempre o nosso lado é o certo, nem sempre o podemos ver como tal.
Se começarmos pelas pequenas coisas, as questões de pormenor, o nosso sistema não é perfeito, está até bem longe de o ser. O estado está mais para sinaleiro de trânsito que para rede de segurança para as desgraças dos cidadãos. As companhias globais veneram mais o lucro que a ética e são estados poderosos, mais poderosos que os países onde estão inseridos. A sua dimensão colossal permite-lhe trancender leis e regulamentos mais incómodos, como o dos direitos dos trabalhadores. A livre iniciativa significa, grosso modo que quem tem dinheiro se safa e quem não tem não. É verdade que nos podemos queixar, mas queixas não enchem barriga, dão conforto ou reconhecimento social.
Depois há ainda as coisas grandes, aquelas de fundo que regulam a nossa convivência com os outros países. Aqueles que não estão do nosso lado. Nós vivemos bem, é verdade, e enquanto seres civilizados e sensíveis podemos ter pena e compaixão para com os menos afortunados, contribuir para boas causas, fazer voluntariado. Mas não pomos em questão o preço das coisas que nos chegam às mãos, o preço real. Poderemos nós abdicar das caixas de presentes, dos sapatos baratinhos, dos oito pares de jeans? Paramos para pensar na exploração dos operários que os fazem? Not really. É que isto de se estar do lado certo e viver bem vem a um preço caro, e raramente somos nós que o pagamos.
Mas analisemos as coisas de outro ponto de vista, do ideológico. Afinal economia é uma coisa, ideologia outra. Podemos dormir descansados a saber que fazemos sempre as coisas certas? Se virmos a famigerada guerra ao terror na hidra que é a guerra do Iraque, as certezas abalam-se um bocado. Não só poderemos pôr em causa os motivos nobres que nos deram para ir para lá, como a nossa acção (nossa no sentido da comunidade internacional em geral) se pode discutir e muito. Como poderemos ser nós os bons ao usarmos os mesmos métodos de interrogatório que os maus? Como poderemos ser nós os bons se as nossas acções fazem sofrer e morrer inocentes, se condenam gerações de homens, mulheres e crianças a viver no terror e na precaridade de campos de refugiados? Faz pensar, não é?
Podemos ter uma abordagem cínica e pragmática à coisa, aceitando que não se podem fazer omeletes sem quebrar uns quantos ovos, justificando assim os "excessos" de quem nos defende e tenta expandir as fronteiras. Todos estes abusos serão justificados se os considerarmos como um caminho para o bem maior, que é trazer mais pessoas para o lado do bem. Podemos ter a atitude da avestruz que é, basicamente, ignorar o que nos rodeia e concentrarmo-nos no que está dentro das nossas fronteiras de segurança e conforto. Ou podemo-nos revoltar e lutar contra o que achamos mal dentro e forado lado certo, o que é cansativo, frustrante e, a maioria das vezes fútil. Podemo-nos resignar e saber que a história é lenta mas o bem acaba por, eventualmente por ganhar ( o que não é grande conforto para os que são agora alvos de injustiça, mas prontos). É tudo uma questão de ver o copo meio-cheio ou meio- vazio. Uma questão de perspectiva. Como viver ou não do lado certo da verdade.

No comments: