Wednesday, May 16, 2007

Os limites da democracia



O que define as nossas convicções políticas? A família? O meio onde crescemos? A sociedade em que estamos inseridos? As três coisas, certamente, mas algo mais. Algo de profundamente pessoal e que engloba aquilo que somos como indivíduos, medos traumas, ambições. Só assim se explica a minha dissidência à esquerda numa familia uniformemente de direita, ou o fenómeno dos manos Portas, filhos dos mesmos pais, educação e meio social e com visões políticas diametralmente opostas.
Na democracia em que vivemos esta opção de convicções políticas é admissível, senão esperada. A cultura ocidental, tão pródiga na sua promoção do individualismo, espera que cada um pense por si e se posicione face ao mundo, assim como espera que os restantes o aceitem, por menos que concordem. Essa é a fundação da democracia, essa capacidade de conceber que haja pessoas com ideias diferentes às nossas e que a elas têm direito, por mais que nos apeteça mandá-los calar ou apertar o pescocinho.
Se a democracia não é perfeita, e conhecemos-lhe tantas falhas, ao menos numa coisa todos concordamos: a base de tolerância é o modelo essencial que pretendemos exportar para civilizar os bárbaros, é por esta atitude que muitos (tantos!) povos oprimidos lutam e dão a vida. Claro que nós que já estamos confortávelmente instalados nas convicções vemos as coisas de forma consideravelmente diferente. E temos dilemas morais por causa disso mesmo.
A possível (provável?) entrada da Turquia na União Europeia é só uma pequena ponta do iceberg de uma Europa democrática pouco confortável na sua pele. Desde debates sobre religião a pequenas erupções do acne extrema-direita, fica-se com a ideia que democracia é mais clara- e mais fácil- em teoria.
Se não entrarmos no assunto sensível do choque de civilizações, a entrada da Turquia na União Europeia continua a ser um assunto espinhoso e ingrato. Por cada vantagem há sempre algo com o qual não estamos confortáveis. Se, por um lado, pode constituir um enclave fundamental no mundo árabe, qualquer coisa como o último posto de civilização antes dos bárbaros (leia-se com ironia, mas não muita), por outro são uma porta de entrada excelente para terroristas e outra coisa ainda pior: hordas de emigrantes . E se a Europa treme com a possibildade de ondas de emigrantes de cor ou religião tão diferente... Se por um lado a Turquia é um excelente mercado, com uma economia em expansão, por outro lado o seu desprezo por direitos humanos deixa-nos mais que só um pouco desconfortáveis. Louvamos-lhe a laicidade do governo, quase caso único no mundo árabe, mas a religião predominante e tudo o que engloba- o tratamento das mulheres, o apelo ao fanatismo religioso- causa-nos repulsa e repúdio. Em última análise, o clube cristão da Europa prefere manter o menino árabe de fora, e acabou-se.
O imaginário colectivo europeu tem uma imagem construída da civilização árabe não especialmente positiva. Foram séculos e séculos de lutas e de hostilidade. A democracia na Europa é demasiado recente (o que são cinquenta anos comparados com os novecentos e cinquenta anteriores?) para conseguir encaixar o árabe com tolerância e como igual (não com o paternalismo de quem acha que pertence a uma civilização superior).
Encaremos a verdade: a entrada da Turquia na União Europeia é um teste aos limites da nossa capacidade democrática, um teste não superado até agora.
Sejamos honestos (eu, pelo menos, vou ser) : a capacidade de tolerância em democracia é elástica, mas não ilimitada. Temos liberdade de expressão, mas não podemos ter sexo em público. A pornografia é aceite, mas não outro tipo de vivências da sexualidade, como a pedofilia. Podemos ter convicções políticas à vontade, mas os movinmentos de extrema-direita de inspiração nazi/xenófoba/racista são, no mínimo dos mínimos, desencorajados. Afinal, a democracia tem e, dentro dos seus limites naturais, faz respeitar os valores de uma matriz ética específica. E esses valores são os limites da democracia. Da raiz do movimento revolucionário- liberdade, igualdade, fraternidade, emanaram um conjunto de valores expressos em documentos tão importantes como a carta dos direitos humanos, a convenção europeia ou a carta dos direitos fundamentais e que, em teoria, regem a nossa vida comum em democracia. E estes valores não podem (nem devem) na minha opinião ser negociados ou postos em causa. Afinal nisto (e só nisto) concordo com Bento XVI- o relativismo moral é perigoso e indesejável, há limites.
Confesso que, apesar de esquerda, a entrada da Turquia me deixa um tudo-nada incomodada. Tudo aquilo em que acredito e tento praticar sobre o repúdio da sobranceria cultural, a tolerância religiosa e a compreensão por todos os seres humanas entra em directo conflito sobre aquilo que sei sobre a Turquia. Tento não deixar o medo vencer, mas é muito difícil, neste momento civilizacional, para qualquer cidadão ocidental não ter pelo menos um bocadinho de fobia em relação ao mundo árabe. Fico furiosa por este medo (as bases de todas as racionalizações acima são também um bocado isto, mas sou eu e muitos milhões na UE a pensar assim) e mais ainda por ir contra as minhas convicções da democracia, mas não há volta a dar-lhe, a democracia tem mesmo limites, e o que está para lá das suas fronteiras mete medo. Muito.

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